'Muitas vezes um juiz quer um segurança para ser diferente', diz Eliana Calmon
Atualizado:
5/3/2012 3:09
Paulo Giandalia/AE
"As elites estão de mãos dadas com a corrupção', diz
a ministra Eliana Calmon"
Mesmo com horário marcado, a fila no gabinete para falar com
Eliana Calmon chega a durar três horas, como na tarde em que ela recebeu a
coluna, semana passada, em Brasília. É um entra e sai vertiginoso de gente com
denúncias contra magistrados. E as queixas vão muito além da corrupção. Dia
desses, chegou pedido vindo de uma pequena cidade do Amazonas. Queriam o
afastamento de uma juíza porque ela amava dois coronéis da comarca ao mesmo
tempo e o caso assanhava a população...
Na sala de espera de seu QG, no prédio do STF, há leituras
variadas: Anuário da Justiça, Vogue e o livro Resp - Receitas Especiais, de
autoria da própria ministra. Na capa da obra está colado um aviso: 'não levar'.
Se um fã de culinária se interessar, um funcionário do gabinete logo avisa como
adquirir um exemplar: 'Aqui mesmo, por R$ 30, com direito a dedicatória'. Aqui,
os principais trechos da conversa:
Sua personalidade forte assusta as pessoas?
Assusta. E isso é ruim porque as pessoas não me veem como uma
pessoa que tem fragilidades, elas me veem sempre como alguém que pode dar
guarida, mas não pode fraquejar.
Tem muitas fragilidades?
Ah, lógico. Todo mundo tem. No final do ano fiquei muito mal
quando vi as associações todas reunidas entrarem com uma representação criminal
contra mim, duas liminares no Supremo, barrando minha atividade, dizendo que eu
era criminosa e que eu estava infringindo a Constituição, estava quebrando
sigilo, vazando informações. O dia da votação (que ratificou os poderes de
investigação do CNJ) foi igual a final de Copa do Mundo. Todo mundo tenso. Fui
tomada por uma enxaqueca tão grande que corri para a casa, tomei remédio e
fiquei no quarto escuro, com o olho miudinho.
Anda com segurança?
Não. E eu vou acreditar nessa segurança? Sou mais meu salto de
sapato. Gosto de dirigir meu próprio carro. Muitas vezes um juiz quer um
segurança para ser diferente. Quer uma mordomia para mostrar aos outros que ele
é importante. Quem é autoridade e tem o poder de dar e tirar a liberdade tem que
ser simples. Isso tudo termina sendo um pouco de doença profissional, porque
quem dá a última palavra sempre fica prepotente. Por isso que digo que nós, da
magistratura, tínhamos de investir na formação adequada dos juízes. Precisamos
ver essa vaidade como uma doença profissional, onde você tem que se cuidar no
dia a dia.
Mas quando você decide ser juiz, você já se dá a autoridade do
certo e do errado. Já é complicado a princípio, não?
Então você tem que ter uma boa formação psicológica. Uma
pessoa que não é analisada não deveria ser juiz.
Qual é o maior inimigo do Brasil?
A corrupção. As elites estão de mãos dadas com a corrupção,
alguns porque realmente fazem parte de uma sociedade corrupta. Outros porque nem
têm noção de que estão contribuindo para a corrupção, como o corporativismo.
Conversou com Dilma na época do quase esvaziamento dos poderes
do CNJ?
Nunca. Não temos relação nenhuma. Eu a conheço de fotografia,
nunca a vi pessoalmente. Ela deu declarações intramuros, nunca a mim.
Sentiu falta de respaldo?
Não. Sou um animal jurídico.
Já disse ser um colibri.
Digo brincando. Não sou um colibri, porque seria uma pessoa
delicada. Não passo isso. Sou muito mais uma loba (risos).
Gostaria de ter sido indicada ao STF se sua idade
permitisse?
Não, não seria feliz lá. É uma Casa muito política, contida,
onde se fala pouco. É uma Casa de muitas vaidades. Não tenho o perfil. Sou como
sou.
Falava-se muito que o ACM mandava na Justiça da Bahia. Tem
fundamento?
Total. Ele mandava em tudo na Bahia, inclusive nos
desembargadores, menos da Justiça Federal. O presidente do Tribunal Eleitoral
chegava a dizer: 'O cabeça branca mandou decidir dessa forma'. Isso eu vivi,
briguei e fiquei isolada.
Como sobreviveu?
Como tenho sobrevivido até hoje. Sou a marca dos desafios, né?
Riam de mim. Mas sempre fui 'brigona'.
De onde vem esse jeito?
Meu pai nunca baixou a cabeça e me criou absolutamente
independente. Com 13 anos eu tinha a chave de casa. Com 16, ganhei um carro.
Tinha motorista e eu dava umas 'direçõezinhas'.
Como era quando criança?
Estudiosa, recitava poesia. Meu pai era um pequeno empresário,
minha mãe, dona de casa, mas de uma família boa. Para ela, eu deveria ser
vaidosa, coquete, tinha que namorar mais, me vestir bem. Sou a 'antifilha'. Para
fazer festa de 15 anos foi um inferno. Achava uma porcaria. Valsa? Um horror. Eu
era bandeirante e, às vésperas da festa, fui acampar. Voltei cheia de picada de
mosquito, breada de sol. Foi a festa da minha mãe. Por mim, nem estaria
presente.
E o casamento?
Outro inferno para convencer minha mãe, que queria um
casamento maravilhoso. Cogitou até aquele cruzamento de espadas. Mas nunca,
jamais, em tempo algum iria me submeter a esse ridículo. Casei numa terça, com
almoço simples. Tinha 24 anos, já formada. Meu marido era oficial de Marinha.
Era intelectual.
Foi uma criança insubordinada?
Meus pais sofreram, eu era ousada, desaforada, voluntariosa,
só fazia o que queria. Fui uma adolescente à frente da época. Isso me ajudou,
pois não virei uma moça medíocre. Tinha tudo para ser casadoura. Esse meu jeito
fez com que eu desabrochasse, enfrentasse uma mãe coquete, uma sociedade
restritiva. E fez com que eu repensasse um casamento.
Casada com militar, quem mandava em casa?
Ele. Ah, não há quem consiga mandar mais que um militar
(risos). Fiquei casada por 20 anos e tinha uma enxaqueca terrível. Fiz diversos
tratamentos. Hoje eu digo que fiquei boa, mas não posso receitar o remédio:
quando eu me separei, a enxaqueca foi embora. Impressionante. Depois do marido,
só quem conseguiu me deixar com enxaqueca foi o Supremo Tribunal Federal. Mas
meu ex foi um grande amigo. Sempre me entendeu, deixou que eu estudasse e
trabalhasse. Eu fiquei casada por dez anos sem ter filho. Até que ele disse:
'Você pensa que casamento é bolsa de estudos? Não é, quero meu filho'. Eu não
queria, sou da geração de Simone de Beauvoir. Ela dizia que a servidão da mulher
é a maternidade e eu acreditava. Hoje tenho uma gratidão a ele, pois me tornei
completa.
Foi dura como mãe?
Duríssima. Por exemplo, ele nunca usou grife, só C&A. Eu
queria uma atitude classe média. Cresceu gente de bem. Brincávamos muito, ele se
sentava junto de mim e enfiava o dedo no meu braço, brincando de dar injeção. Aí
eu disse: 'No dia em que você passar no vestibular, vou ficar de calcinha e
sutiã para você me dar injeção' (risos). O danado passou em primeiro lugar.
Como é a sogra, Eliana?
Extremamente contida. Porque tenho gênio muito forte e ela
também tem - aliás ela foi o maior tributo que meu filho podia pagar a mim. Ele
escolheu uma mulher igualzinha.
E como avó?
É uma perdição, aí é outra Eliana. Meu neto tem dois anos e
meio. Meu filho comentou: 'Minha mãe, estou preocupado, imagina que ele está se
jogando no chão'. Eu disse: 'Tem que pôr limites, façam isso rapidamente. E não
esperem minha ajuda, porque estou aqui para fazer todas as vontades
dele'(risos). Ele fica: 'Vovó, vovó'. Vai no meu closet, bota todas as minhas
pulseiras, os colares. Entra para tomar banho de banheira e eu entro junto, boto
sais de banho e ele fica assim (passando sais pelo corpo). Adora. Quando estou
cozinhando, ele me ajuda, deixo ele mexer.
A senhora é uma mulher à frente da sua época. Cozinhar já não
teve um significado muito ligado à dona de casa?
Pensei nisso. Por que as mulheres resistem tanto? Acho que é
até uma forma atávica de querer se libertar. Elas só tinham vez na procriação e
na cozinha. Lá eram as donas do pedaço, onde o homem não apitava. Então quem se
libertou não quer mais isso. Mas quando a cozinha deixou de ser um subjugo?
Quando os homens chegaram neste cômodo. Cozinhar é uma química. Fala-se que,
quando um começa a mexer a panela, o outro não pode pôr a mão. Já tive essa
experiência, e não pode mesmo. Quando desanda, não há força humana que faça
voltar ao ponto.
Em termos de religião...
Agnóstica. Eu acredito na energia, porque acho que isso não é
metafísico, é físico e depois acabou. Sem crise existencial. Eu sou uma mulher
analisada. Fiz terapia uns cinco anos.
Depois que separou?
Não, foi para separar (risos).
Não casou mais?
Não. Tenho uma amiga desembargadora que me disse: 'Pare com
essa cafonice de dizer 'meu ex-marido', pois significa que só teve um. Tem que
dizer 'meu primeiro, meu segundo...' Mas não casaria de novo.
Namora?
Pouco. Para uma mulher como eu é difícil. Tenho uma
personalidade muito forte, aí os homens que também têm não admiram, e homem
fraco também não quero. Outro dia apareceu um advogado bem sucedido e disse ao
meu motorista: 'O senhor sabe que vou casar com sua chefe?'. Quando o motorista
me contou, perguntei: 'Eu quero saber, sr. Ferreira, o que o senhor acha?'. Ele
disse: 'Ele não aguenta, não' (gargalhadas). Eu achei ótimo. Outro dia eu fui a
um tarólogo, de tanto meu chefe de gabinete me atentar, chegou a pagar a
consulta, disse que era o meu presente de aniversário. Aí, perguntei: 'Senhor
Paulo, eu quero ver aí se vou me casar novamente'. Ele botou as cartas e disse:
'Ah, ministra, vai aparecer um homem bem corajoso' (gargalhadas). Eu brinco com
o pessoal: 'Cadê o homem corajoso que até agora não apareceu?'.
=> http://estadao.br.msn.com/cultura/muitas-vezes-um-juiz-quer-um-seguran%C3%A7a-para-ser-diferente-diz-eliana-calmon
g
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui o seu comentário. Obrigada.