PARADOXO INCÔMODO
“Diretas já... diretas já... diretas já....”. Os ecos daquelas manifestações históricas, que
reuniram milhões de brasileiros nas ruas das cidades do país, ainda hoje ecoam
como símbolo da determinação de um povo, da bravura de homens e mulheres que,
depois de décadas de despotismo, de autoritarismo, de terror, deram vazão
pública ao clamor pela escolha de seus dirigentes, pressuposto da edificação de
um verdadeiro Estado de Direito Democrático.
Na condução daquele inesquecível movimento, a Nação
reuniu seus segmentos mais representativos, personalidades de diversos
segmentos, da política às artes, da intelectualidade à classe trabalhadora, se
amalgamaram com os organismos corporativos para reverberar um único sentiment
o: por abaixo o regime de força instaurado com o golpe militar de 1964. E
dentre tantos, a marcante atuação da Ordem dos Advogados do Brasil, honrando
sua tradição de defesa intransigente das liberdades democráticas, destacou-se
de modo impecável, atuando firmemente no rebate às manobras jurídicas do
regime, postando-se diante das passeatas com suas faixas e bandeiras,
criticando com veemência o processo de preservação da ditadura. Sem dúvida,
muito da credibilidade e do respeito de todos os brasileiros à OAB advem dessa
intimorata atuação.
A despeito dos louros históricos, a OAB encontra-se
hoje oprimida por um paradoxo incômodo: no centro de sua organização, embora
representante de mais de 700 mil advogados, a entidade rege-se pela forma
indireta de eleição de seu presidente, reservando a apenas 81 advogados,
conselheiros federais dos estados, e pelo escrutínio secreto, a tarefa de ungir
seus dirigentes. Quanta ironia!
É a lei, podem argumentar os desejosos da manutenção
do sistema (as indiretas da ditadura também o eram) . E, de fato, a previsão
legal contida na Lei 8906/94, referendada pela recente rejeição do Conselho
Federal na discussão sobre a Reforma Eleitoral, perfaz o arcabouço que
viabiliza a regra indireta hoje adotada. Mas tal legalidade já não casa mais
com a legitimidade que a OAB tanto cobra de tantos e não observa para si
própria. Nesse passo, a iminência do Projeto de Lei 2916/2011, que propõe eleições
diretas para o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, surge como o
instrumento adequado à superação desse anacronismo.
Veja-se que a formatação jurídica para o problema vem
a propósito de um crescente movimento pelas diretas na OAB. No próprio seio do
Conselho Federal já existem manifestações expressas de insatisfação com o
modelo, vindo, inclusive, à tona ações nesse sentido na última Conferência
Nacional ocorrida em 2011 em
Curitiba. No cerne do problema está, sobretudo, a falta de
transparência que acaba inspirando os acertos às escondidas para a escolha do
presidente e diretoria, viciando o processo e, por conseguinte, fragilizando a
entidade perante a sociedade, desmoralizando-a junto àqueles que nela enxergam
justamente a salvaguarda da ci dadania. Não medram, com efeito, os
argumentos vazios, ouvidos aqui e ali quando o tema vem à baila, de que, sendo
diretas as eleições, permitiriam a ingerência desmedida do poder econômico,
afastariam os estados com menor número de profissionais da disputa,
concentrariam o poder nas mãos das grandes seccionais e outros mais que,
falsamente, atribuem ares elitistas à proposta.
As regras eleitorais hoje vigentes na própria
entidade, à parte no tocante à via indireta, mostram-se adequadas para coibir
abusos que desvirtuem a legítima vontade dos advogados. Ademais, não se concebe
que um candidato de um determinado estado receba todos os votos de sua
seccional, fato que não encontra amparo no senso médio das análises políticas,
sendo certo que prática s saudáveis de composições vigentes no nosso regime
federativo irão, como sói acontecer, orientar os candidatos na busca da
legitimação em todos os recantos e não só em suas searas. De toda sorte, há
fórmulas em gestação que podem auxiliar no aperfeiçoamento da idéia geral das
eleições diretas, impedindo distorções, favorecimentos e xenofobismos.
Tudo somado, o que temos é a urgência de que essa
bandeira seja assumida pela própria Ordem dos Advogados do Brasil. Os milhares
de advogados pelo Brasil afora não podem ficar sujeitos aos constrangimentos,
que se avizinham inevitáveis, acarretados pela cobrança social de coerência,
que parece alheia aos atuais dirigentes da entidade. Não podemos mais conviver
com a hipocrisia atacada pela máxima apostolar do faça o que eu digo, mas
não faça o que eu faço. Temos uma tradição democrática a honrar e não vamos nos
reservar, como o poeta Paul Claudel, o direito de nos contradizer.
Wadih Damous é presidente
da OAB-RJ.
Revista Consultor
Jurídico, 7 de março de 2012
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